Performance: modos de estar e transformar

 Performance: modos de estar e transformar*

Em 1989, o diretor teatral Renato Cohen (1956-2003), lançava o pioneiro livro ¨A Performance como Linguagem¨, onde investigava elementos performáticos nas artes, desde a perspectiva do teatro experimental. Ele comentava sobre arte conceitual, o punk, body art, happenings, xamanismo, psicologia, antropologia e semiótica, dando dimensão das diversas referências e complexidade da linguagem performática. Sua abordagem seguia o pensamento do também diretor e teórico estadounidense Richard Schechner, que já nos anos 1970 discutia o ato de ¨performar¨ como sendo algo inerente ao ser humano em convívio social. Assim, ele apontava que uma cerimônia de candomblé, um batismo, uma manifestação, um ritual marajoara, um reality show, um jogo, tudo é ou contém performance.

Como linguagem na arte, a performance tem portanto a matéria prima nos ¨modos de agir¨ do homem em sociedade: dos atos solenes aos mais banais, como escovar os dentes, tudo possui potencial estético e narrativo. A performance procura iluminar gestos naturalizados pela rotina, para que sejam ressignificados e alcancem uma dimensão poética e crítica, dentro e fora dos espaços convencionais da arte. Ela se apresenta como ações que tentam se aproximar ao máximo do mundo ¨real¨. Um exemplo seria alguém fritando um ovo em um fogareiro no meio do museu ou na calçada: algo que dependendo da intenção e do contexto, pode ser arte ou não. A performance é a arte da fricção com a vida e, em qualquer àrea que se coloque, instiga pelo seu hibridismo e polissemia, sendo uma via para questionar disciplinas engessadas, desconstruindo estruturas e padrões estabelecidos.

A palavra anglo-saxônica infiltrada em nosso idioma latino, significa ¨desempenho¨ e hoje designa uma categoria ou ainda, um modo de fazer artístico que está perto de se definir melhor – mas longe de ter uma só definição. Tal característica a resguarda de uma completa institucionalização e esterilização, permitindo-lhe se mostrar como crítica na situação mais mainstream ou alternativa, mesmo quando lida com temas que já são clichês – como no caso da velha nudez.

Esta, ainda que explorada ad nauseam desde os anos 1960, ainda pode ativar muitas questões, de acordo com o momento e como surja. No caso da arte contemporânea, onde os papéis do dramaturgo, encenador, ator ou dançarino são borrados em favor da supressão da noção de ¨representação¨, temos bons exemplos de artistas que ainda hoje ¨apresentam¨ sua nudez. A artista radicada em São Paulo, Ana Montenegro, costumava mostrar em singelas e desconcertantes ações seu corpo maduro, magro e branco, sem próteses ou maquiagens, lembrando-nos que não somos à prova de pêlos, gordura e rugas como se vende. De modo similar faz a paranaense Fernanda Magalhães com uma obra autobiográfica de relatos, imagens e performances, que falam do desconforto do mundo diante de um corpo gordo – e nu – como o seu. O trabalho surgiu após ela ter vivido por um tempo no Rio.

Sobre a paternidade da performance, esta pode ser reivindicada pelo teatro, a dança e as artes visuais. Todas defendem, a seu modo e com fundamentos, certas verdades definitivas sobre a ¨linguagem¨ nas artes. No entanto, um dos aspectos fascinantes é também a quase impossibilidade de enquadrar tecnicamente a arte da performance. Prova disso são os distintos núcleos de pesquisa do assunto em universidades brasileiras, tais como nas Artes do Corpo (PUC-SP), Artes Cênicas (Uni-Rio, UNICAMP), Artes Visuais (UnB, UFRJ, UDESC) e até na Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP, UFBA). Em cada um desses centros de estudos, novas dúvidas e possibilidades de enquadramento da performance surgem, e parecem não se esgotar.

Um breve giro histórico mostra que na virada do milênio, coletivos de artistas e indivíduos começaram a desenvolver, em muitas cidades brasileiras, ações performáticas interdisciplinares de todo tipo, em especial no espaço público. Em 2000, parte da inspiração vinha da própria história recente da arte e do teatro experimental, de leituras situacionistas e também de práticas sociais ativistas de grupos como Greenpeace e o britânico Reclaim the Streets, atuantes nos anos 1980-90, que se valiam da atitude performática como instrumento de reivindicação civil. Atualmente no Brasil há dezenas de grupos independentes que não apenas investigam performance como também realizam mostras, seminários e fóruns nacionais de inspiração diversa. No Facebook, a rede de realizadores e pensadores do tema conecta quase 3mil pessoas de muitos lugares.

Em termos de políticas culturais, a esfera dos patrocínios e editais carece compreender a performance como uma disciplina ou àrea independente, e portanto são raras as iniciativas exclusivas para sua promoção e divulgação, ainda que ela figure como categoria em certames de dança, teatro ou artes visuais. Vale apontar que a única excessão dos editais foi lançada pelo MinC em 2010, e premiou projetos de festivais nacionais de performance em várias capitais. Contudo, não teve continuidade, fazendo-nos perder a oportunidade de prosseguir no mapeamento e profissionalização de centenas de artistas que pensam e praticam a performance no Brasil hoje.

Por outro lado, uma boa amostra de guinada para a performance é o Panorama, no Rio, cuja linha curatorial expandiu o conceito de dança contemporânea para incluir ações e espetáculos que partem da pesquisa de movimento corporal mas são abertamente contaminados por outras áreas artísticas, científicas e humanas. De fato, as possibilidades são todas quando o que está no centro do evento é o corpo e suas formas de se colocar plástica, poética e politicamente no espaço e no tempo. Nas Artes Cênicas, a interação com elementos performáticos se mostra em aproximações com o mundo real, que colocam a representação em lugar ambíguo, um pouco apartada da total ficção dramatúrgica. Porém, no teatro a ruptura radical se dá em 1959, quando o artista Allan Kaprow, ex-aluno de Jackson Pollock, cria o seu ¨novo teatro¨ – logo conhecido como Happening. A interdisclpinariedade era vital para a renovação das artes naquele momento, e a aproximação com a vida seria inevitável. Hoje, o dado performático nas Cênicas se mostra como um aprofundamento dos preceitos de Kaprow e encenadores da época, que compreenderam o gesto de aproximar o artista-ator do público como algo potencialmente transformador e político. Assim, elementos da performance no teatro são notados nos espetáculos fora dos palcos, que lidam com improviso, que se misturam à platéia, que mudam a cada dia. Já os anos 1990 o diretor gaúcho Gilberto Gawronski, incorporou o método do Work in Progress em alguns trabalhos, o que significava fazer alterações diárias na estrutura da peça que era construída com elementos levados pelos próprios atores.

Na atualidade, notamos como a performance – ou o performático – invadiu a vida nas marchas das ruas, enquanto que nos lugares da arte a política é a tônica em muitas performances. De acordo com o performer e pesquisador Lucio Agra, o brasileiro é um povo culturalmente performativo, e arrisco então dizer que até mesmo em nossas passeatas e manifestações esse traço se apresenta, tornando o papo sério e urgente, há tanto tempo desejado, um pouco mais leve: Batman que o diga.

Daniela Labra

* Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 4/11/2013, sob o título de ¨Luz nas Trevas¨

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