Já é! Notas sobre Performance arte e institucionalização*
Daniela Labra
*Publicado em: Performance Presente Futuro Vol II. RJ. Aeroplano/Oi Futuro, 2010
Bingo. Pelo segundo ano consecutivo realizamos, em parceria com a instituição cultural Oi Futuro, um evento que se dedica à discussão e disseminação da ação performática no campo das artes visuais e suas relações conceituais, formais e práticas com as novas tecnologias. Embora a arte da performance tenha se institucionalizado na seara estrangeira ainda nos anos 1970, o interesse por ela vem sendo incrementado nos últimos dez anos no Brasil e no mundo, estimulando um crescente empenho de artistas e produtores de cultura na articulação de festivais e encontros sobre o tema.
Eessa maré favorável, a performance como linguagem volta renovada à cena das experimentações, assumindo deliberadamente seu caráter interdisciplinar e reivindicando colocar em pauta as discussões próprias da sua natureza crÃtica, hoje muitas vezes esvaziada no domÃnio do mercado e, paradoxalmente, da instituição que incentiva sua proliferação. Mesmo assim, enquanto o seu lugar no circuito artÃstico mundial se oficializa, performar a vida na arte ainda é um gesto de resistência em relação à consolidação da cultura de massa vigilante, hipermidiática e acachapante instalada como padrão a partir da segunda metade do século XX.
A ação performática estimula o contato direto entre público e artista-obra, criando tensões a partir da exploração do real, do confronto com o elemento inesperado contido em um ato ao vivo e sem ensaio, e inverte desse modo a lógica alienante e distanciada do espetáculo. A performance mostra-se como coparticipante do real, ou, pelo menos, como um elemento capaz de produzir interferências que questionam as condutas socialmente consesuadas na vida cotidiana.
De acordo com o crÃtico e curador Paco Barragan, em relação à produção de performance dita clássica, conectada com o discurso dos anos 1960-70, a prática performática atual traz os seguintes aspectos: 1. o firme desejo do artista de fazer uma arte pública ou em espaço público; 2. o caráter portátil da ação, que pode ser reproduzida em diferentes entornos e diante de públicos diferentes; 3. o tom da obra adquire hoje um caráter mais intimista, pessoal e também mais descontraÃdo; 4. já não há nenhum tipo de hierarquia entre a ação e seu registro; 5. se favorece uma produção abundante de informação escrita, gravada ou fotografada; 6. o remake de certas performances históricas transcende a mera reprodução da ação original para se converter em uma forma de arte nova; 7. igual a antes, a prática performática continua preconizando um espÃrito crÃtico com a sociedade; 8. continua sendo a única disciplina dentro das artes visuais que oferece arte direta, viva, espontânea e sem intermediários.
Além do que foi dito, sob a perspectiva de um festival como Performance Presente Futuro, que confronta a performance com recursos tecnológicos, a presença de elementos mediadores (ou intermediários) entre o artista-obra e o espectador-fruidor é um aspecto na atualidade totalmente assumido e por vezes desejado. Este dá substância à performance ao possibilitar-lhe jogar com novas camadas de tempos e mobilidades espaço-temporais mediatizados sem que haja perda de sua caracterÃstica fundamental, que é a de ser arte feita ao vivo apoiada no contato direto e nas trocas intersubjetivas.
Contudo, mesmo com a rica contribuição da tecnologia disponÃvel, talvez o maior diferenciador da produção atual de performance com a de outrora esteja na atualização e consequente recontextualização histórica e social da própria prática e algumas de suas temáticas – ou táticas – centrais. E é por essa via, e não pelo incremento tecnológico, que a arte performática reconquista espaço e consegue integrar-se mais ou menos comportadamente à lista de disciplinas artÃsticas contemporâneas.
Um exemplo de temática/tática atualizada é a nudez, que é um dos recursos mais presentes em muitas ações de performance até hoje. Embora corra o risco de ser utilizada de modo gratuito, quando revisitada com inteligência contribui para ricos questionamentos de toda ordem, principalmente ao ser inserida em meio institucional. Se, no passado, o corpo nu denotava vanguarda e escândalo mirando o status quo, no momento atual a sua banalização na mÃdia é consenso, e portanto somente a ação que assuma esse contexto do nu no presente poderá recuperar a sua potência reflexiva.
Hoje, o performer nu pode pretender chamar a atenção para questões subjetivas como o retorno do homem à sua espiritualidade ou animalidade, ao corpo-casa, ao corpo-corpo, sinalizar um corpo sem defesas ou próteses, vulnerável porque orgânico. Tais procedimentos são observados na obra de performers atuantes como Marco Paulo Rolla (MG), Ana Montenegro e MaurÃcio Ianês (SP). No cenário internacional, Ron Athey (EUA) e Franko B (Reino Unido), entre outros, promovem performances radicais nas quais o corpo e seus fluidos são manipulados para provar que é possÃvel ser sinceramente livre, ao menos no modus faciendi do artista.
A nudez como recurso e choque estético está contida em um outro tema importante da performance, que é a crÃtica institucional. Como nada em uma ação performática além do seu registro pode ser comercializado, sua presença nos anos 1960-70, especialmente nos Estados Unidos e Europa, era vista como uma atitude de enfrentamento ao circuito comercial de arte no momento em que este se consolidava. A primeira geração de artistas performáticos a agir nessa direção, nos anos 1960, concentrava-se em discutir a lógica do sistema da arte e suas instituições – museus, galerias, coleções, centros culturais, escolas – e questionavam mecanismos de valorização do produto artÃstico, como a exclusividade e singularidade de uma obra, o lugar simbólico da galeria, o consumo, o posicionamento do artista, entre outros.
Essa tendência foi levada especialmente por artistas europeus como Piero Manzoni, Yves Klein e Ben Vautier. No Brasil, temos, dessa época, o paulistano Grupo Rex. Será em meados dos anos 1970, contudo, que irão somar-se a essa produção discursos manifestamente polÃticos de cunho social, de gênero, identidade e credo, acrescentando dados transculturais de relevância global à crÃtica que antes se dirigia ao mundo da arte ocidental em primeiro lugar. Desse perÃodo, a lista de artistas é extensa e pode-se destacar Marina Abramovic e Ulay, Gina Pane, Joseph Beuys, Carolee Schneeman, Hannah Wilke, Orlan e Vito Acconci, além de Cildo Meireles, Hélio Oiticica e Lygia Pape.
Um exemplo notório de ação de crÃtica de gênero e cunho anti-institucional, é a obra Seedbed (1972), de Acconci. Esta se consistiu na construção de um platô de madeira sobre o piso de uma galeria para que o artista ali ficasse, escondido sob a estrutura por três semanas, 8 horas por dia, masturbando-se e murmurando obscenidades para o público que passeava na superfÃcie à espera de “ver†ou perceber alguma arte em um espaço aparentemente vazio.
Hoje em dia, trabalhando como arquiteto, Acconci comenta que, em ações como aquela, ele procurava de fato fugir do estigma do gênio criador-celebridade, encarnado tradicionalmente em uma figura masculina caucasiana, e que seu desejo era colocar à prova a função da galeria como espaço comercial com performances nas quais negava sua própria condição de artista. Ao perceber seu incômodo com o próprio meio que o acolhia, sua carreira foi dando uma guinada para projetos que envolvessem o uso público e anônimo do espaço, até que chegou à arquitetura.
Atualmente, a crÃtica ao meio institucional de arte integrou completamente o mundo e seus assuntos, evitando abordagens simplórias diante da complexidade de poderes e discursos que envolvem qualquer sistema na contemporaneidade, inclusive o artÃstico. Compreendendo isso, a performance será vista como estratégia por alguns para discutir o circuito da arte e ao mesmo tempo interagir com a realidade social e polÃtica global. Assim é a prática de artistas como Santiago Sierra, Minerva Cuevas, Tania Bruguera e Francis Alys, entre muitos outros, que curiosamente nem sempre são os performers e idealizam a ação para a participação de terceiros. Já nomes como Andrea Fraser, Regina José Galindo, Guillermo Gomez-Peña e Coco Fusco, por exemplo, de fato agem como performers. À exceção da norte-americana Fraser e de Santiago Sierra, espanhol radicado no México, todos os demais são latino-americanos.
Pode-se ainda citar coletivos brasileiros como Filé de Peixe, Frente 3 de Fevereiro, Poro e mm não é confete, dentre vários, e ressaltar os asiáticos com projeção no ocidente Mad for Real, dupla chinesa radicada no Reino Unido, e o artista tawianês Techching Hsieh, baseado nos EUA. Este ficou conhecido por suas performances com duração de um ano, as quais, se não criticavam explicitamente o sistema mercantil da arte, ao menos fizeram pensar sobre a construção da figura do artista ocidental como prestador de serviços e mártir genial.
Asiáticos ou latino-americanos, é fato que um estilo de performance mais crÃtica e radical vem surgindo dos paÃses emergentes, marginalizados da escritura oficial da história da arte. Tais paÃses, como é o caso do Brasil, apresentam uma riqueza cultural aliada a problemas sociopolÃticos tão profundos que a crÃtica institucional engendrada extrapola o foco das instituições de arte apenas, uma vez que estas, na maioria dos casos incompetentes ou precárias demais para potencializar a circulação de arte moderna ou contemporânea, são reflexo de um sistema social endemicamente desigual e perverso.
Portanto, em geral, a investida crÃtica se dá contra um alvo maior, que são os descompassos profundos e complexos, em nÃvel local e global, que sufocam a estrutura responsável pela manutenção de um ambiente propÃcio para o desenvolvimento pleno de atividades relacionadas a arte, cultura e educação. É importante ressaltar, contudo, que, apesar de promover o questionamento acerca do engessamento da instiutição e seu mau funcionamento, o artista hoje é consciente da necessidade de ter a seu favor boas instalações, bolsas, prêmios e patrocÃnios para fazer circular uma pesquisa estética e ampliar o seu raio de inserção. E, portanto, a crÃtica é muitas vezes no sentido construtivo, restando ao sistema que possui problemas ouvi-la.
Outra face deste mesmo esquema é o próprio mercado de arte e galerias comerciais, que se estabeleceram como braço forte do meio institucional. Poucas têm se interessado em investir na performance como plataforma, mas as que o tem feito percebem o bom retorno de público – e consequentemente de clientes – que um evento vivo e processual oferece. Ao contrário do ambiente de uma instituição, em uma galeria particular o compromisso social e financeiro-fiscal, embora existente, é de outra ordem, permitindo que as propostas exibidas sejam ainda mais experimentais e livres. Além disso, deve-se admitir que, se outrora o performer resistia às instalações mercadológicas, hoje elas podem ser aliadas do artista – principalmente se este tiver posicionamento ético para atuar com transparência e discernimento junto ao sistema mercantil.
O fato é que, atualmente, interessa ao artista contemporâneo, incluindo o performer, contar com um meio de arte sólido o suficiente para fazer circular pesquisas de processo sem finalidade objetual. No entanto, para acolher tais propostas, uma instituição, pública ou privada, precisa armar-se de coragem, pois serão estas, ainda que polêmicas ou incômodas à primeira vista, que renovarão o público, o olhar e a discussão sobre arte, impedindo que haja engessamento e envelhecimento precoce de um circuito.
Nesse sentido, o evento Performance Presente Futuro, que em 2009 chegou à sua segunda edição, é um gol a favor da tarefa de formar visões sobre arte contemporânea em nosso paÃs. Somente um olhar atento poderá apreciar o que está por ser escrito na história das artes, dos centros periféricos e das periferias centrais, onde a performance já foi, é e ainda será ação transformadora. Porque a arte não envelhece nunca; o que muda é o jeito de enxergá-la.
Texto publicado em:
“Performance Presente Futuro Vol. II”. Org. Daniela Labra. Editora Aeroplano, Rio de Janeiro, 2010
me lembrei dos anos 80 quando fazÃamos performances, video instalações e penetráveis, expostos no Parque Lage – Geração 80 e MAM – O Visual do Rock… tinhamos vinte anos, éramos inocentes… e hoje vejo como a arte sempre foi profissional.