
O artista pernambucano Gil Vicente estará expondo duas séries de desenhos na próxima Bienal de Artes de São Paulo, que inaugura no dia 21/09. Uma das séries, chamada Inimigos, consiste em desenhos em grande escala, onde o artista se retrata prestes a cometer um atentado à integridade fÃsica de personalidades influentes da polÃtica mundial e do Brasil. Obviamente polêmicos, a obra é um grito contra a apatia e o conformismo com os quais assistimos as incongruências dos lÃderes junto ao povo que os elegeu e confiou.
Acusado de apologia ao crime, o artista e sua obra correm o risco de serem censurados pela Ordem dos Advogados do Brasil e retirados da exposição.
Uma lástima, pois tal decisão é obtusa além de hipócrita. Perde-se neste debate moralista a oportunidade de se refletir sobre a arte e toda a sua potência transformadora. Desse modo, os desenhos do artista são tratados como meras fotografias sensacionalistas de jornais populares – lidos por milhares diariamente – e que de fato falam de violência sem conteúdo crÃtico, apenas para fins comerciais, o que deveria ser considerado chocante mas não é mais.
Abaixo, o texto crÃtico de minha autoria sobre a série Inimigos, escrito para o catálogo do artista que será lançado na Bienal de São Paulo em breve. A obra é bela e merece ser respeitada!
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Arte Fora da Ordem
“Por onde andam os subversivos?†Ao lançar esta questão na rede social onde possuo 570 amigos que mal conheço, a primeira resposta veio em seguida: – No poder. Flanando na internet, se lê que a polÃtica e o entretenimento nunca estiveram tão juntos como atualmente e que dificilmente irão se separar. “Independente da causa em questão, grande parte da comunicação polÃtica contemporânea segue a linguagem do espetáculo, como forma de guerrilha. A fórmula serve e é aplicada tanto para fins sociais relevantes como para qualquer outra coisa sem cabimento, por movimentos diversos e até por instituições como os partidosâ€.[1] Enquanto a tática de guerrilha vira instrumento de marketing, no Brasil indignar-se com a situação polÃtica e social está em desuso.
Indignado, porém, Gil Vicente decide ir na contramão desse padrão e repudia a linguagem do espetáculo para posicionar-se, subversivamente em forma e conteúdo, contra as estruturas da polÃtica e da cultura de massa, interligadas na contemporaneidade. Em sua ira e desilusão com o modo operacional de um sistema que considera maldito por que, como crê, apenas alimenta desigualdades e injustiças, o artista resolveu, em 2005, inventar uma persona terrorista para alvejar, com una arma gráfica, lÃderes arquetÃpicos de uma ordem mundial em crise aguda.
Ao contrário do que a primeira leitura das obras sugere, Gil se coloca, de fato, num “estado de vÃtimaâ€[2] para acertar as contas com as hipocrisias, mentiras e manipulações de estadistas e representantes do Povo. No jogo que mistura realidade e ficção, o artista-vÃtima não panfleta ideologia partidária, nem faz julgamento moral ou religioso de qualquer ordem. Na concepção niilista de quem viu a utopia de ações movidas pelo discurso da esquerda marxista Pós-2ª Guerra, dar lugar à atual fome de destruição movida a fé, petrodólares e narcoeuros, Gil Vicente, poeta e cidadão, sugere a implosão sumária do establishment e da sua ética em situação de irrecuperável ruÃna.
Por sua vez, no plano da visualidade estética também pode-se creditar a Inimigos um papel de inssurgente. Seus desenhos transgridem tanto a etiqueta do politicamente correto, quanto as tendências de mercado que privilegiam ora o conforto de discursos minimalistas acrÃticos, ora a literalidade fácil de obras que repaginam ad nauseum o Pop  e outros estilos, modernos ou pós.
Estes desenhos, no entanto, possuem o traço e a narrativa de impacto dos quadrinhos policiais transmitindo, em cada um deles, a tensão contida na cena imediatamente anterior ao grande desfecho da estória. Porém, por serem diretos e literais, por que narrativos, a sofisticação de Gil Vicente se mostra justamente na dispensa do uso de metáforas, ainda que utilize amplamente o recurso da representação.
O grande paradoxo desta série porém, está no fato de que, ao levar tais desenhos a público, o artista exerce todo o Poder que o status quo lhe confere. Gil Vicente aproveita-se da posição privilegiada de profissional inserido num circuito intelectual respeitável, para trocar o estado de VÃtima na ficção do desenho por um estado de Representante social na vida real. Sem desfaçatez e atento, ele se utiliza abertamente do sistema – também polÃtico – da instituição de arte, para fazer sua obra circular semi protegida de possÃveis censuras e ataques das esferas poderosas.
Longe de culpas, Gil Vicente é um ateu em busca da fé na consciência polÃtica transformadora, hoje apaziguada pela midiatização da cultura e pulverizada em centenas de coletividades ativistas as quais, pela pluralidade de motivações e modos de atuação, nem sempre conseguem tecer uma alternativa efetiva contra o sistema de poder, cada vez mais controlador e onipresente.
Em Inimigos, o artista dá um tiro de advertência para o alto, como um guerrilheiro que se move na possibilidade de fazer terrorismo sem sangue, através da imagem e da poesia. Representando-se na execução de um ato limite, ele urra contra Estados ignóbeis e acorda para a luta os jovens e adultos anestesiados pelo consumismo e pelo prazer imediato. Assim, os desenhos de Gil Vicente advertem que a arma mais subversiva existente, mesmo com todos os sustos e espetáculos, consumos e tecnologias, é a capacidade de reflexão e de gerar sonhos. E que diante do menor risco dessa capacidade ser tolhida deve-se pressionar, sem hesitar, o botão  Indignar-se.
Daniela Labra
[1] FRANZ, Tiago. In: http://perspectivapolitica.com.br/tag/ativismo-politico/ acessado em 15/07/2010
[2] FARIAS, WalquÃria. “O Energúmenoâ€. Texto de catálogo. 2005