Deu na Folha de São Paulo em 15/06/2010:
Dupla de alemães interna artistas, galeristas, curadores e crÃticos em clÃnica de reabilitação em Berlim
SILAS MARTÃ
DE SÃO PAULO
Arte tem cheiro de cocaÃna. Num mundo de festas encharcadas de champanhe, da velocidade do mercado que acompanha a voracidade do vÃcio, dois alemães decidiram levar artistas, curadores, crÃticos e galeristas para a clÃnica de reabilitação.
Benjamin Blanke e Claudia Kapp, também artistas, fizeram dos colegas cobaias para entender o papel das drogas nas artes visuais.
Em vez de mostrar suas obras, pediram ao KW, centro de arte contemporânea em Berlim, que bancasse a desintoxicação de personalidades do meio artÃstico numa clÃnica de reabilitação perto da capital alemã.
No meio de uma floresta, o sanatório Havelhoehe recebe até 291 pacientes, tem duas alas de desintoxicação e usa pintura, escultura e também ginástica nos tratamentos.
São adeptos da chamada medicina holÃstica, ou antroposófica, que tenta dar atenção equivalente a aspectos fÃsicos e mentais do paciente.
Internos do projeto, que passaram cerca de dez dias na clÃnica, foram convocados por e-mail. O convite tinha só uma imagem, a de uma porta fechada, usada pelos artistas para divulgar o projeto.
“Uma pessoa já disse que era uma reflexão sobre estética”, resume Claudia Kapp à Folha. “Não diria que é uma performance, mas um trabalho mais conceitual, de estética relacional iconoclasta.”
Jargões à parte, a realidade dos mais de 200 inscritos no projeto passou longe dessas dimensões filosóficas.
“Desde que cheguei, me dão doses de um pó branco três vezes ao dia para reduzir a ansiedade”, escreveu um crÃtico de arte internado na clÃnica. “É como cocaÃna ao contrário, precisaria cheirar toneladas para sentir qualquer sensação de alÃvio.”
Mais do que alÃvio, uma pausa. Na visão dos artistas, as drogas nesse meio não têm mais a ver com ampliar horizontes da percepção, como os anos 60 e 70 popularizaram o uso do LSD e afins.
“É menos hedonista”, diz Kapp. “Está mais ligado à competição: aumentar, melhorar, acelerar a produção.”
Tanto que, além dos artistas que se inscreveram, maior alvo do programa, crÃticos e galeristas insones com preços nas alturas e a rotina pesada dos vernissages correram para a clÃnica.
VÃCIOS REAIS
“Alguns deles não eram viciados em nada”, conta Kapp. “Queriam só se desintoxicar do mundo da arte.”
Esses que buscavam uma limpeza ideológica ficaram fora da clÃnica, onde médicos de verdade, além de psicanalistas e psiquiatras, trataram seus vÃcios reais.
“À noite, uma toalha encharcada de chá medicinal é aplicada contra meu fÃgado para absorver as toxinas”, escreveu um crÃtico alcoólatra internado na clÃnica.
Ele adianta o relato descrevendo as esculturas de argila que fez para passar o tempo. Enquanto seus dotes artÃsticos permitiram fazer só umas vasilhas, uma colega esculpiu até um busto de Hitler.
“Conhecemos artistas, amigos pessoais, que estão sofrendo muito com isso”, conta Kapp. “É horrÃvel.”
Ela vê nesse ponto uma relação cada vez mais estreita entre arte e o mundo das celebridades, “estrelas do rock conhecidas pelos excessos”.
Muitos dos inscritos na reabilitação, aliás, achavam que teriam seus trabalhos expostos em Berlim como contrapartida ao tratamento.
“Achavam que ficariam famosos, mas o projeto é anônimo”, diz Kapp. “Tudo tem cada vez menos a ver com arte, há um grande vazio.”