Reflexões caótico-poéticas sobre o Rio de Janeiro 2

Registro de Ocorrência

Perdeu playboy. A bela paisagem sob a luz de maio é o canto da sereia. Seduz com voz aveludada o incauto transeunte que como o marinheiro em alto-mar, é cooptado para um passeio de delícias em águas profundas e quebradas misteriosas. Ali, perde a vida extasiado de amor e pânico.

Sem mais metáforas, o Rio de Janeiro é a sereia: uma linda cidade em conflito consigo mesma que oferta e admira seu povo com a beleza de seu canto, para dar o repentino bote em quem se aproxima demais de alguns dos seus sedutores, mas perigosos, tesouros.

Esta exposição concisa, realizada em nobre espaço da cidade, nos traz a faceta mais incômoda da mágica sereia. Registro de Ocorrência, termo emprestado da rotina das delegacias, apresenta 11 artistas jovens que exibem, à sua maneira, percepções de um cotidiano carioca conturbado e violento, difícil de aceitar.

A idéia da mostra surgiu de uma ocorrência policial de fato. A partir dela, Jaime Portas Vilaseca engendrou a exposição de tema áspero e surpreendentemente pouco discutido na arte brasileira atual: a truculência e confusão urbana em nosso País. Os artistas foram convidados para explorar a questão, e o fizeram com sarcasmo e ceticismo, acreditando talvez que a arte não sirva apenas para acalmar as retinas cansadas, devendo também estimular o debate. Assim, a poesia se colocou como alento e escapatória, e também como via cínica de protesto de uma geração já acostumada às grades grotescas, e às epidêmicas câmeras de vigilância que cerceiam nossos olhares.

Tocar num tema tão contundente e caro para o cidadão pode induzir a uma certa literalidade das obras. No entanto, apesar desse risco percebemos um conjunto cuja potência estética-crítica vai além da mera competência de cumprir uma demanda temática. Por que o assunto é quente e a chapa também, e em meio ao fogo cruzado, a escritura sagrada da arte pode ser a única tábua de salvação para algumas almas perdidas. Será? Acreditamos que sim.

Daniela Labra


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